
Entrevista realizada por Vinicius Marino Carvalho.
Originalmente publicada em: https://www.finisgeekis.com/2021/04/07/entrevista-explorando-a-revolucao-russa-em-the-life-and-suffering-of-sir-brante/

Uma sociedade precariamente dividida em três classes sociais. Um “Império Abençoado” multicultural cuja própria forma traz à mente uma certa confederação europeia (https://pt.wikipedia.org/wiki/Sacro_Imp%C3%A9rio_Romano-Germ%C3%A2nico ). Uma Igreja que enfrenta um cisma entre uma “Velha Fé” tradicionalista e “novos fieis” que exigem o acesso direto às escrituras. Um estilo de arte distintivo que parece tirado direto de um caderno de rascunhos de Albrecht Dürer. (https://pt.wikipedia.org/wiki/Albrecht_D%C3%BCrer)
Não é preciso muito para adivinhar que The Life and Suffering of Sir Brante, um RPG text-based lançado mês passado, foi criado por artistas com uma formação em história. Lidando com temas como conflitos ideológicos, inquietação social e autoritatismo em temos de mudanças sem precedentes, o game cai como uma luva no momento único que enfrentamos.
Os paralelos podem ser coincidência, mas a intenção de trabalhar essas questões de maneira crítica não. Assim me contou Fyodor Slusarchuk, autor do cenário e conceito originais.
Nessa entrevista exclusiva, ele me guiou pelo seu processo criativo e pelas maneiras surpreendentes como criaram uma Renascença fantástica como lente para entender a Rússia contemporânea.
Como revoluções acontecem

O jogo nos coloca nos pés de Brante, cidadão de um regime opressivo chamado Abençoado Império Arkniano nas vésperas de uma revolução religiosa sem precedentes. Cabe a nós decidirmos que papel tomaremos na insurreição que virá.
Para um medievalista que ocasionalmente lida com fontes da era moderna, que nem eu, é díficl não encarar Sir Brante como uma refência à Reforma Protestante e às Guerras de Religião. O próprio “Abençoado Império Arkniano”, como seu nome deixa claro, me parece um equivalente óbvio ao Sacro Império Romano Germânico, onde Lutero viveu.
De acordo com Slusarchuk, porém, a revolução de Sir Brante foi inspirada por um evento muito mais recente – e mais próximo das sensibilidades de seus criadores russos.
“Sir Brante foi baseado em uma série de jogos de LARP que organizamos durante um período de 17 anos, de 1997 a 2014” Slusarchuk me contou “Quando começamos nossa série de jogos, a fantasia medieval tradicional era considerada comum demais. Fantasia ‘sombria’ era um gênero cada vez mais popular”.
Mas houve outra razão para situar o jogo na era moderna. “Conforme nós ficamos mais velhos, nós começamos a pensar nos processos históricos por trás da nossa cultura e do nosso país. Na época, eu era um estudante no instituto histórico da nossa universidade e me interessei pelos períodos revolucionários na França e na Rússia – e em outros países também. Mas eu estava particularmente intrigado pela Primeira e Segunda Revoluções Russsas no século XX.”
“É um dos períodos mais importantes da nossa história, o evento que determinou nosso século XX – e talvez também o XXI.”
“Para entendê-la de verdade, eu acreditava que nós precisávamos ir mais fundo e explorar outros modelos de revolução, não apenas a Russa.”

É uma inspiração que se manifesta até mesmo na identidade artística – embora seja difícil para não-russos enxergarem.
“Nosso artista é muito interessado pelas estéticas medievais, coisas como gravuras, e também jogos inspirados na Idade Média como Darkest Dungeon. Foi muito divertido para ele trabalhar nesse estilo.
“Mas ele também se inspirou em livros ilustrados da Rússia Soviética. Eles tinham ilustrações simples e primitivas feitas a lápis. Mas eles deixavam bastante espaço para a imaginação. Eu acho que nós dois fomos influenciados pelos livros da nossa infância” ele ri.

Àqueles que têm olhos treinados, é também possível identificar alguns paralelos com figuras importantes da história russa.
A amiga de infância de Brante é Sophia, uma jovem que eventualmente se torna líder de um grupo extremista conhecido como The Last Straw (“A Ultima Gota”). O artbook oficial menciona que ela compartilha o nome com Sophia Perovskaya (https://en.wikipedia.org/wiki/Sophia_Perovskaya ) , uma das mandantes do assassinato do Czar Alexandre II em 1881.
Mas Slusarchuk me recomendou não prestar muita atenção nas referências específicas.
“Sabe, é até difícil apontar as inspirações históricas das nossas personagens, porque nós as misturamos muito bem, eu acho.”
“Nosso objetivo principal, na verdade, era criar personagens que tivessem algum poder histórico, que haviam desempenhado um papel na história russa – seja em movimentos laborais, conservadores, religiosos ou intelectuais.”
“Nós temos tido uma discussão muito longa sobre a nossa história; uma discussão que se estende por dois séculos ou mais e que continua a ser feita, não apenas em congressos de história, mas também na nossa vida política.
“Para mim, criar um jogo é uma forma de continuar essa discussão”.
Questões de fé

Um dos elementos mais distintivos de Sir Brante é sua disposição a discutir religião. Muitos jogos retratam a fé de uma maneira ou de outra, mas não é todo dia que nos deparamos com um em que disputas teológicas ganham os holofotes.
Ao contrário do politeísmo de muitas franquias de fantasia, a igreja de Sir Brante é visivelmente inspirada nas religiões abraâmicas – e, especificamente, em uma intepretação particularmente rigorosa do cristianismo. Qualquer ação que desafie o status quo é rotulada de “pecado”, e suas divindades – os Deuses Gêmeos – não oferecem misericórdia aos que erraram. Desafiar a elite política significa condenar sua alma à danação eterna.
No início da história, porém, essa igreja está passando por mudanças drásticas. Um cisma põe o clero tradicional em confronto com fieis dissidentes. A “Velha Fé” argumenta que apenas membros do sacerdócio podem comentar a palavra de Deus, e apenas uma interpretação sancionada pelo estado – escrita por uma figura inspirada em São Paulo, chamada Isatius – deve ser considerada canônica. A “Nova Fé”, por sua vez, acredita que todo mundo deve ser livre para buscar seu próprio caminho até Deus.
“Nós criamos os conceitos de sinas [ as ordens sociais em que a sociedade é dividida ] e deuses inclementes para nossos jogos de LARP, especificamente aquele que foi organizado em 2003, “A Era da Renascença”. Nós queríamos um conflito que envolvesse não apenas ordens políticas diferentes,mas também tradições culturais distintas. Minha própria formação é em história cultural, e eu acredito que a cultura é um dos fatores mais determinantes da história.”
“A inspiração mais importante para a religião do jogo foi o cisma entre a cristandade católica e ortodoxa ( https://pt.wikipedia.org/wiki/Grande_Cisma .) Nossa fé é uma metáfora para a tradição russa ortodoxa porque ela era uma tradição bastante vinculada ao Estado.”
Segundo essa metáfora, qual fé representaria a igreja russa no jogo? A Velha ou a Nova?
“Certamente a Velha Fé. É uma religião em que você sabe exatamente o que você deve a Deus e o que você deve ao seu imperador. Seus padres agem como “profissionais” na vida da sua alma.”
“E um dos maiores problemas, da forma como eu entendo, é que as pessoas investiram muito em líderes religiosos, e procurar seu próprio caminho até Deus não era uma ideia muito disseminada.”
“No início do século XX, houve uma grande discussão entre Lev Tolstói e nossa igreja sobre como o cristianismo ortodoxo não tinha experimentado uma reforma. Nós não tínhamos tido um Martinho Lutero, não tínhamos comunidades independentes na nossa igreja. Eu acredito que isto foi muito importante para o caminho histórico que tomamos.”
Nuance e agência do jogador

Nem tudo no jogo é uma referência óbvia à Revolução Russa. É digno de nota que Sir Brante também introduza muitas sociedades esotéricas, algumas das quais têm papeis importantes – e sinistros – na jornada de nosso protagonista. Em vez de moldá-las em sociedades secretas que realmente existiram, Slusarchuk me contou que as ideias por trás delas vieram da literatura.
“Eu não posso dizer que sou um expert na história das sociedades místicas. Minha principal inspiração foi o conto As Três Versões de Judas de Jorge Luís Borges. Foi daí que eu tirei as ideias para a Sociedade Markiana [ uma seita hedonista que puxa as cordas por trás de muitas das instituições do jogo] e os Vontadistas de Ulrich [ uma facção extremista da inquisição ].”
“Eu também devo muito ao Umberto Eco. A provavelmente todos os seus livros, mas sobretudo O Nome da Rosa, O Pêndulo de Foucault e O Cemitério de Praga.”
“Quando eu tinha vinte e poucos anos, era muito importante para mim entender quão diferentes podem ser nossas interpretações de histórias que conhecemos de nossa infância. O Borges me ensinou a enxergar aspectos diferentes das relaçõès entre homem e Deus – e como eles podem ser modificados.”
Alcançar esse nuance ao lidar com os temas do jogo foi, segundo Slusarchuk, a principal preocupação da equipe.
“Nossa tradição de RPG tem alguns princípios básicos, e um deles é não privilegiar um único lado; não fazer um jogo de um único ponto de vista. Era muito importante para nós entender outras posições e tentar representá-las no jogo.”
É uma premissa que o jogo cumpre até bem demais. Desde os primeiros capítulos que lidam como nossos anos de infância, é evidente que o Abençoado Império Arkniano é uma sociedade irremediavelmente quebrada.
Mesmo assim, você não é obrigado a dar um empurrão final nesse leviatã alquebrado. Algumas escolhas farão com que o protagonista se torne um membro da baixa nobreza, entre para o clero ou continue um plebeu. Embora cada uma dessas decisões possa colocar Brante no caminho de um revolucionário, você também pode decidir apoiar o status quo – e até mesmo instaurar uma ordem reacionária que fará o império de outrora parecer liberal em comparação.
Como Slusarchuk explica, o princípio não é muito diferente de um exercício de história contrafactual. Para realmente apreciar as implicações do future que você criou, é necessário explorar o que teria acontecido se as coisas tivessem se desenrolado de outra maneira.
“Nós desenvolvemos o game de maneira que você tem algumas opções básicas que determinam seu futuro, mas você pode se deparar com alguma coisa que faça você mudar de ideia. E talvez o resultado disto venha a ser um desastre. Talvez fará você desistir ou tentar um outro caminho, mas é importante estar em uma posição reflexiva, tentar entender o que foi que você escolheu.”
Isso casa com um dos poucos elementos explicitamente fantásticos em Sir Brante: a própria morte. No jogo, perder a vida não é necessariamente uma condição de fracasso. Todas as personagens – incluindo os NPCs – podem ser mortas até quatro vezes até que sua alma finalmente abandone o corpo. Sempre que o próprio Brante experimentar uma morte menor nós temos de encarar os Deuses Gêmeos e responder a questões crípticas sobre as decisões que nos trouxeram até ali.

“A morte, no nosso jogo, é um ponto de reflexão. Nós perguntamos ao personagem, e talvez ao jogado, sobre o que foi sua vida. E nós esperamos que jogadores possam então entender que é hora de mudar alguma coisa”.
A mudança, de fato, é talvez o principal tecido conjuntivo que une as pontas de sua narrativa. Do próprio Brante ao NPC menos relevante, suas personagens são pessoas que entendem que o mundo tal como conhecem deixará de existir e estão lutando para apressar seu fim, para evitá-lo, para sobreviver a ele – às vezes, apenas para tirar algum sentido do que está acontecendo.
É uma mensagem que parece super relevante para nosso próprio presente depois de um ano e meio de pandemia de Covid-19. Teria Sir Brante alguma coisa a dizer sobre os tempos em que vivemos, atormentados como são pela ascensão de populismos radicais, instabilidade econômica e um futuro que parece tão cruel e incerto quanto os desígnios dos Deuses Gêmeos?
“Eu estaria sendo otimista demais se respondesse com um “sim” confiante” disse Slusarchuk. “Era o nosso objetivo ter uma mensagem, embora eu não tenha certeza de que tenhamos conseguido passá-la”.
Talvez, como os mistérios da Nova Fé, essa é uma resposta que cada jogador terá de encontrar por conta própria.