Aula 6 (Teoria) – Realidade Virtual e Realidade Aumentada – conceitos básicos
De todas as aulas deste curso, talvez tenhamos chegado a mais filosófica. A Realidade Virtual (R.V.) e a Realidade Aumentada (R.A.) são frutos diretos da Cibernética pois, como veremos, seus elementos básicos lidam com feedback. Peço a você um pouco de paciência e, principalmente, que abra sua mente, pois iremos discutir o que seria essa tal de “realidade”. Vou me basear bastante em minha tese de Doutorado (caso queira lê-la, está aqui). Vamos lá!
Como quase todos os autores que falam sobre Realidade Virtual, também irei começar expondo a alegoria de Platão. Primeiro, veja o vídeo abaixo (habilite as legendas em português):
A principal ideia por trás do conceito virtual pode ser encontrada na obra A República do filósofo grego Platão, redigida no século IV a.C.. O “Mito da Caverna” de Platão descreve uma caverna separada por um muro alto que, do lado de dentro, tem prisioneiros acorrentados de costas ao muro, enquanto o lado de fora da caverna está aberta ao mundo, com pessoas vivendo normalmente e acendendo fogueiras: uma pequena abertura no muro é o que liga os dois lados; os prisioneiros, nascidos dentro da caverna e, por consequência, sem ter noção do mundo exterior, veem sombras refletidas na parede – são imagens das pessoas do lado de fora que, graças à luz das fogueiras, adentram a caverna pela pequena abertura no topo do muro; junto com as sombras, chega o som dos homens de fora e os prisioneiros, sem terem percepção do que acontece do outro lado do muro, acreditam com convicção de que essas sombras são a realidade; se um dos prisioneiros conseguisse se libertar e escalar o muro, ele iria deparar com uma outra realidade, a do mundo dos homens que acendem as fogueiras na natureza – estaria, então, semeada nesse prisioneiro libertado a dúvida: se voltar para dentro da caverna e contar a seus companheiros corre o risco de, ou ser ignorado, ou até mesmo ser morto devido à acusação de mentira. A alegoria da caverna de Platão talvez seja o que melhor exemplifica a R.V.: a capacidade de fazer com que nós acreditemos em algo que nos chega de modo indireto, criado pelas leis da física ou por programação de computadores. A R.V., então, pode ser definida como algo que possui o potencial de se tornar real (fictício ou verossímil).
Não é tarefa simples definir o que é real. Muitas pessoas podem dizer que real é o que existe, mas, pensando-se assim, por que muitas dessas mesmas pessoas dizem que um arquivo de editor de texto no computador (como o que estou usando nesse exato momento) é algo virtual? O arquivo, de fato, existe, não? Afinal, estou trabalhando nele agora. Se você estiver com meu trabalho em mãos, impresso em papel, ele é mais real do que se o ler na tela do seu computador (ou tablet, ou smartphone)? Se você chegou à conclusão de que tudo, papel ou meio digital, é real, parabéns: você compartilha das mesmas ideias do filósofo francês da informação que tem recebido bastante destaque acadêmico nos últimos anos, o Pierre Lévy – e em quem eu me baseio também para discutir a realidade.
Pierre Lévy tem contribuído enormemente para o campo da comunicação, estudando as relações entre a Internet e a sociedade. Entre suas obras traduzidas para o português, podemos destacar As tecnologias da inteligência: o futuro do pensamento na era da informática, Cibercultura e O que é o virtual? – possuindo esse livro algumas definições importantes para nós nesse instante. Em O que é o virtual?, publicado na França em 1995, Lévy lançou novos olhares sobre as conceituações de real e virtual, apontando ideias que fizeram os estudiosos repensarem suas próprias definições. Não é muito fácil aceitar e assimilar suas concepções em um primeiro momento (tendo em vista que a maioria de nós passou a vida toda opondo real ao virtual), tampouco é simples de explicar. Farei aqui uma brevíssima tentativa de explanar os conceitos de Pierre Lévy, mas seria muito importante os interessados nesse debate lerem a obra original para melhor compreensão. Para fins didáticos, vou separar as três definições principais que norteiam seu pensamento:
1) Real: é aquilo que existe no momento, é o presente. Seguindo o exemplo de Lévy, o real é como uma árvore que enxergamos;
2) Virtual (do latim virtus, “força, potência”): é o potencial de algo vir a ser real, embora o virtual em si seja real. Dentro da semente está uma árvore em potencial, a semente é o virtual da árvore e, como semente, é real também. Uma árvore pode, do mesmo modo, vir a ser uma folha de papel, logo, a árvore também contém o virtual, mesmo sendo real. A virtualização é um questionamento, é uma problemática que deve ser respondida em algum momento;
3) Atual: é o que algo é de fato, é uma espécie de “codificação”. O atual da árvore é ser madeira, seiva, galhos, raízes e folhas. A atualização, então, se opõe não ao real, mas ao virtual, uma vez que fornece respostas às problemáticas geradas pela virtualização. Assim sendo, a virtualidade e atualidade são dois tipos diferentes da realidade.
Em outras palavras: tudo é real! Mas em estágios distintos e que ocorrem ao mesmo tempo (ou não). Retomemos o exemplo do arquivo de texto que estou digitando. Estou vendo e interagindo com o teclado do meu computador para que surjam caracteres na tela: isso é o real. Contudo, esse arquivo de texto não está sendo redigido em um só dia e, por isso, ele fica armazenado em meu computador em forma de bits e bytes: ele é o virtual, pois nele está contido um arquivo de texto em potencial, que pode vir a ser real (quando eu clicar duas vezes para ele abrir) ou não (se eu o mantiver guardado em meu disco rígido, virtualmente). Todo o processo de transformação dos bits e bytes em uma janela de editor de texto que acontece quando clico duas vezes sobre o ícone com o nome do meu arquivo é o atual. E a todo instante o real se atualiza, pois digito caracteres e mais caracteres para formar palavras que surgem na tela LCD.
Você pode assistir ao próprio Lévy falando sobre seus conceitos no vídeo abaixo (ative as legendas):
Agora que discutimos a parte filosófica, vamos falar um pouco sobre a parte prática da Realidade Virtual e Aumentada.
A R.V. teve seus primeiros experimentos na década de 1940, quando no contexto da Segunda Guerra Mundial a força aérea dos EUA passou a construir simuladores de voo para treinar seus pilotos. Um pouco mais de uma década depois, em 1956, Morton Heilig desenvolveu o Sensorama. Inspirado pelo sucesso do Cinerama (cinema + panorama) nos anos 1950 nos EUA, que consistia em três telas de cinema colocadas em série formando uma concavidade de 146°, o Sensorama de Heilig era um simulador multissensorial apresentado em forma de cabine que misturava visão estereoscópica, áudio estéreo, vibrações mecânicas, aromas e vento – contudo, o Sensorama não era interativo.
Durante sua pesquisa de doutorado no Massachusetts Institute of Technology (MIT) em 1963, o cientista da computação Ivan Sutherland desenvolveu o dispositivo que é considerado por muitos como um precursor na área da Computação Gráfica, o Sketchpad. Para efeitos de comparação, o Sketchpad funcionava como os tablets de hoje: utilizando uma caneta óptica (light pen), o usuário conseguia desenhar diretamente na tela do computador formas geométricas simples, como linhas retas, círculos e hexágonos. A inovação trazida pelo Sketchpad, tal como descreveu em seu artigo (anexado às leituras recomendadas abaixo), estava na interação homem-máquina dentro de um sistema de comunicação gráfica que deu origem ao CAD (Computer-Aided Design, “desenho auxiliado por computador”). Mas Ivan Sutherland continuou suas pesquisas e foi além, desenvolvendo em 1968 o primeiro dispositivo HMD (Head-Mounted Display, “vídeo-capacete estereoscópico”) de Realidade Virtual e Realidade Aumentada. Veja o Sketchpad em ação:
Aqui, o HMD de Suterland:
O dispositivo criado por Sutherland, então, trabalhou com uma característica essencial da R.V., que é a imersão. Com o capacete colocado, o usuário tem a sensação de estar imerso em outro ambiente que se mostra verossímil. O grau de imersão varia de acordo com o dispositivo utilizado: mesmo com o uso de óculos 3D, a nossa sensação de imersão é ligeiramente inferior à proporcionada por um HMD, que preenche toda a nossa visão. É diferente estar diante de um monitor de computador 3D ou com um capacete ou óculos de RV – o nosso grau de visão é bem maior do que os monitores, permitindo-nos observar o que está ao seu redor, prejudicando o efeito tridimensional; o mesmo acontece em uma CAVE (Cave Automatic Virtual Environment, “caverna”), quando nossa sensação de imersão sofre uma quebra devido às arestas que unem as telas da caverna e atrapalham a paralaxe. Abaixo, a CAVE presente na Universidade de São Paulo (USP) denominada Caverna Digital:
Afora a imersão, a R.V. também conta com a interação em seu cerne. Isso é o que difere basicamente a animação da R.V.: a interatividade. Enquanto na animação o usuário é passivo, apenas observando o que é mostrado na tela, na R.V. ele é o protagonista principal, atualizando a todo momento a realidade mostrada na tela ou HMD. A interação do usuário no ambiente acontece, na maioria dos casos, em seis graus de liberdade (6DOF – six degrees of freedom), ou seja, seis tipos de movimentação: para frente/para trás, acima/abaixo, esquerda/direita, inclinação para cima/para baixo, angulação à esquerda/à direita e rotação à esquerda/à direita; porém, também existem dispositivos que permitem 3DOF e 2DOF (como o mouse comum de computador).
Os sensores na R.V. são responsáveis por permitir a imersão/interação dos usuários e consistem em dispositivos de hardware que atuam em conjunto com softwares. Esses dispositivos são separados em duas grandes categorias: os dispositivos de entrada e os de saída, responsáveis por realizar o tracking do usuário (o rastreamento de sua posição no ambiente virtual). No vídeo abaixo você pode conferir a liberdade de movimentação do usuário utilizando os dispositivos de interação rastreados:
Além da R.V., outra área que vem se desenvolvendo com fôlego enorme é a da Realidade Aumentada (R.A.). Segundo Allan B. Craig (2013: 15), a R.A. é “um meio no qual informação é adicionada ao mundo físico sendo registrada nesse mundo”. Já o cientista da computação Ronald T. Azuma, em seu artigo seminal A Survey of Augmented Reality, de 1997, define a área como:
“uma variação de Ambientes Virtuais (A.V.), ou Realidade Virtual, como é mais comumente chamado. As tecnologias de A.V. imergem completamente o usuário em um ambiente sintético. Enquanto imerso, o usuário não pode ver o mundo real ao seu redor. Em contraste, a R.A. permite ao usuário ver o mundo real, com objetos virtuais sobrepostos ou compostos com o mundo real. Portanto, a R.A. suplementa a realidade ao invés de substituí-la completamente. Idealmente, pareceria ao usuário que os objetos reais e virtuais coexistem no mesmo espaço, semelhantemente aos efeitos alcançados no filme Uma Cilada para Roger Rabbit. (…) A R.A. pode ser pensada como um ‘meio termo’ entre A.V. (completamente sintético) e telepresença (completamente real).”
Azuma aponta, ainda, três características básicas da R.A.: 1) combina real e virtual; 2) interação em tempo real; 3) registrada em 3D. Allan Craig, por sua vez, se debruça sobre essas três características e as amplia, chegando aos seguintes aspectos-chave (2013: 16):
1) o mundo físico é aumentado pela informação digital sobreposta em uma visão no mundo físico;
2) a informação é mostrada juntamente com o mundo físico;
3) a informação mostrada é dependente da locação do mundo real e da perspectiva física da pessoa no mundo físico;
4) a experiência da realidade aumentada é interativa, isto é, uma pessoa pode perceber a informação e fazer mudanças nessa informação caso deseje: o grau de interatividade pode ir desde uma simples mudança de perspectiva física (por exemplo, enxergar em um diferente ponto de vista) até manipular ou até mesmo criar nova informação.
A partir do que foi dito acima, podemos dizer que a R.A. permite que uma camada de informação (digital, sempre) seja posta sobre o mundo físico que observamos. Imagine a seguinte situação: por alguma razão que só você sabe, numa certa noite decide pegar seu carro para comprar algo no mercado mais próximo. Tudo seria tranquilo se você não tivesse escolhido visitar alguma cidade que mais parece ter saído de algum livro do Stephen King – ou seja, só há gente estranha, pouca iluminação e, para variar, o mapa que você comprou no posto de gasolina mais próximo (que ficou a mais de 50 quilômetros para trás) está desatualizado há anos. Seria uma tragédia se você não tivesse trazido consigo seu smartphone. Graças a esse maravilhoso dispositivo, sua noite está salva (por enquanto, afinal, nunca se sabe…): você seleciona o aplicativo de GPS, busca por “mercado” e, num instante, surge a localização mais próxima. Porém, como dito, você está em um lugar em que as ruas são drasticamente mal iluminadas e totalmente esburacadas: é perigoso dirigir e olhar a tela do dispositivo ao mesmo tempo (já que a saída de áudio está queimada faz tempo). O que fazer? Vivendo em um futuro não muito distante do meu, você sabe que apertando um simples botão toda a informação de seu GPS é transferida para o para-brisa touchscreen de seu carro. Ao fazer isso, imediatamente surge um ponto pulsante no vidro que parece atravessar os prédios. Ao mesmo tempo, sensores implantados nos postos de iluminação defeituosos, por algum milagre, estão funcionando e captam o sinal oriundo de seu carro. Eles decodificam a informação e liberam pequenos feixes de luz que, sobrepostos ao asfalto, vão lhe guiando até o mercado. Parabéns, você chegou ao inóspito mercado gerenciado por algum sujeito mal-encarado graças à Realidade Aumentada (agora pague a conta e suma daí antes que seja tarde demais!).
Por ser a R.A. algo com o qual devemos interagir no mundo físico, não há muitas aplicações que estejam presas aos computadores desktops que conhecemos (ou até mesmo aos notebooks/laptops). A maioria das aplicações de R.A. são desenvolvidas para dispositivos portáteis, como o smarthphone que acabamos de ver, ou tablets: é o que convencionou-se denominar A.R. Mobile (Augmented Reality Mobile, ou Realidade Aumentada Móvel – RAM). Os principais benefícios da RAM incluem: a portabilidade; a mobilidade; estar disponível a qualquer hora e em qualquer lugar o acesso, de forma flexível, a diversos recursos e em tempo real; economia de tempo; rapidez de comunicação; capacitação e envolvimento dos alunos. Contudo, os desenvolvedores sempre precisam ter em mente as limitações reais da RAM, uma vez que ela é um conjunto de software e hardware, dependendo muito deste último para existir. Assim sendo, é necessário considerar o hardware do público alvo: não adianta ter uma aplicação R.A. notável se quase nenhum usuário possuir dispositivos capazes de executá-la. Devemos, então, sempre levar esses fatores em consideração quando formos trabalhar com RAM: tamanho da tela do dispositivo; consumo de energia; a precisão de localização; câmera de qualidade; processamento e memória; registro; segurança; tempo real; dependência; desempenho; cobertura; quantidade de dados; dinamicidade; interação; conteúdo. O conteúdo é o fator primordial em toda e qualquer aplicação, não devendo, jamais, ser relegado ao segundo plano.
Vamos falar mais um pouco sobre Realidade Virtual na próxima aula. Na verdade, é um dos meus assuntos preferidos: videogames!
Leitura recomendada
› SUTHERLAND, Ivan. “Sketchpad. A man-machine graphical communication system”. In: DAC ’64 Proceedings of the SHARE design automation workshop. New York: ACM, 1964, pp. 329-346.
Artigo clássico de Sutherland.
› AZUMA, Ronald T. “A Survey of Augmented Reality”. In: Presence: Teleoperators and Virtual Environments 6, 4 (August 1997), 1997, pp. 355-385.
Artigo de Azuma com o estado-da-arte da Realidade Aumentada até a época em que foi redigido.
› CRAIG, Allan B. Understanding augmented reality. Concepts and applications. San Francisco: Morgan Kaufmann Publishers, 2013.
Livro obrigatório para o entendimento sobre Realidade Aumentada.
› SHERMAN, William R. & CRAIG, Alan B. Understanding virtual reality. Interface, application, and design. San Francisco: Morgan Kaufmann Publishers, 2003.
Provavelmente o livro mais completo sobre Realidade Virtual.
Jogo recomendado
Bom, acredito que todo mundo já deva ter experimentado Pokémon Go (2016) mas, caso você não tenha, aproveite: é um grande exemplo de Realidade Aumentada aplicada a dispositivos móveis.
Pode baixar a versão para Android ou iOS.
Filme recomendado
O Passageiro do Futuro (The Lawnmower Man, 1992) é um dos primeiros filmes a retratar a Realidade Virtual imersiva nos cinemas. É muito interessante!
Powerpoint da aula
Aposto que a aula foi tão boa que até se esqueceu de fazer anotações, não é mesmo? Sem problemas!
Clique aqui para baixar o PPT: Download da aula.
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